25 de fevereiro de 2010

Quando Tomé conversou com Deus

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A solidão bateu à porta e não esperou ser atendida, entrou sem convite. Veio como o peso de um fardo difícil de carregar e tinha o sabor de tristeza. Poucas vezes Tomé havia se sentido triste como naquela chuvosa noite de sexta-feira. Ele reparava pela janela de seu chalé e pelo som no telhado: hora chovia, hora nevava – o som da chuva e o silêncio da neve são inconfundíveis. Nunca antes tinha se sentido tão só.

O vivido cidadão do mundo não sabia o real motivo daquele sentimento, apenas se sentia só, e triste. Era como se, numa guerra, toda sua tropa tivesse morrido sob fogo inimigo e ele, sozinho, encarasse o árduo desafio de voltar para casa, ensanguentado, mas com vida. Deitou-se e não conseguir dormir. O relógio despertador apontava meia-noite e, na cama, tinha a companhia de uma bela mulher. Adormecida, ela não tinha como perceber a angústia nos olhos e no respirar ofegante de Tomé, não podia fazer nada por ele. Só Deus poderia.

Deus, por pressuposto, estaria mais ocupado com os grandes problemas da humanidade, como a fome, a ganância, a corrupção, o ódio, a falta de fé e de moral. E se Deus estava ocupado, era melhor beber algo a orar. Levantou-se. Não fazia muito frio, mesmo assim pôs calça e camisa de manga comprida.

O relógio de parede apontava zero hora e 15 minutos. "Por que quando as coisas não vão bem a hora não passa", questionou-se. Do armário, sacou a melhor de suas garrafas de vinho. Ligou o computador, o televisor e o aparelho de DVD, apanhou uma revista, encheu a taça. Não navegou na internet nem assistiu ao filme escolhido nem leu qualquer coisa. Brindou consigo mesmo, duas, três taças, enquanto pensava na vida e nos dias que estariam por vir.

Entre um gole e outro... bem, muitos goles depois, Tomé lembrou-se de algo estranho que ocorrera em um culto, em sua primeira ida à igreja no ano. Tomé, bem como seu xará bíblico, era um homem desconfiado e gostava de um ditado por ele mesmo inventado: "Não confie cegamente em nenhum líder religioso, mas leia mais a bíblia". Por isso: bebia vinho; também por isso: não dizia amém para qualquer profecia. Certa vez, ouviu de uma "irmã" da igreja: "Deus me revelou, em sonho, você casado com fulana de tal". Tomé respondeu: "Então peça pra Deus lhe mostrar direito, porque a mim, que seria o mais interessado, Ele não disse nada". Outra vez, ouviu: "Crente de verdade não bebe". E respondeu: "Ah é, então por que Jesus transformou água em vinho e não em suco de maracujá?"

Contudo, o que ocorrera naquele culto, um mês antes, tinha sido diferente. E pensar naquilo, enquanto degustava sem pressa o bom vinho, trazia paz ao coração ansioso de Tomé. Na ocasião, o pastor estava viajando e, no púlpito, uma desconhecia levava a mensagem de fé. Bradava "aleluias", citava decor trechos do Livro Sagrado, falava em bênçãos, etc. Nada diferente do que Tomé, de família protestante, que crescera na Igreja Metodista, já não tivesse visto e ouvido centenas de vezes. Daquela pregação, ele não se recordava de uma única palavra. Enquanto a prepadora falava, Tomé lia trechos da bíblia e, em seu íntimo, conversava com Deus.

Senhor, quando é que tu vais falar comigo? Não aguento mais esta ansiedade — dizia, em oração, sem convicção alguma de que Deus iria ouvi-lo. — Queria saber se devo ficar ou ir embora — pensava Tomé, descontente com os rumos de sua profissão. Era da opinião de que o mundo é grande e interessante demais para um homem passar a vida toda numa mesma cidade, no mesmo trabalho, no mesmo fuso horário.

O telefone tocou. Eram os pais de Tomé, do outro lado do Atlântico, querendo saber notícias do tipo: "está precisando de dinheiro?", da parte de pai; "está se alimentando bem?", da parte de mãe. Há anos havia deixado sua cidade natal e a distância de seus pais e irmãos, e os longos meses sem vê-los, contribuíam em muito para aqueles momentos de angústia e solidão. Despediu-se dos pais, mandou abraços aos irmãos, "calibrou" outra taça de vinho para, então, retomar a reflexão do ponto onde havia parado.

Cansei de ouvir profecias vãs. Queria que Você falasse comigo — disse, em pensamento, de modo que apenas Deus pudesse escutar, caso não estivesse ocupado com afazeres mais importantes. Percebeu todos com os olhos fechados e que o culto estava na oração final, prestes a terminar. Ao dizer amém, como de praxe, foi surpreendido.

Você, de óculos – disse a mulher que levou a Palavra naquela noite. – Sim, você mesmo. Deus está te dizendo que não esqueceu de você – a essa altura, Tomé já estava estático, com os olhos fitos naquela senhora, quase como se estivesse hipnotizado. Ainda era cedo para crer, queria ouvir o que ela tinha a dizer.

Como assim, fui eu que me esqueci de ti. Fazia tempo que não vinha à igreja – retrucou Tomé, em diálogo que se passou em pensamento. – Qualquer um aqui tem te buscado mais do que eu, Tu sabes disso

Você se mantém humilde – prosseguiu a mulher, com a profecia. — Deus tem algo grande preparado pra ti este ano. É algo que você deseja muito e que fará bem às pessoas que te cercam. E quando vai ser? — perguntou Tomé, no silêncio de sua mente.

Tua benção será revelada ainda neste semestre. Eu sei até o mês e o dia, mas não vou te contar — quase sem piscar, Tomé ainda ouviu: — Você tem sido fiel. Não consigo descrever quanto amor Deus sente por ti.

Senhor, lembra quando o apóstolo Paulo disse ser o maior dos pecadores. Garanto que ele não teria dito aquilo depois de me conhecer.

Deus conhece teu coração e sabe os pensamentos daqueles que te cercam — prosseguiu a mulher. — Muitas pessoas sentem inveja de ti, mas te garanto que inveja alguma vai te atrapalhar.

Depois daquilo, os dias de Tomé não foram os mesmos. Nem todo mundo está preparado para o sobrenatural. Gente como Pedro, João, Paulo, talvez, Tomé não. Em noites seguintes, teve sonhos que se repetiam. Eram bons e o advertiam para algo que estaria por vir... e que viria logo. Ao refletir sobre a promessa de bênção, percebeu que o peso da solidão havia partido sem se despedir.

Duas horas mais tarde e uma garrafa de vinho a menos para contar história, teve sono. Fez uma oração, afinal, lembrar da profecia havia feito bem a Tomé, e conseguiu dormir. Despertou cinco horas mais tarde, com o barulho da namorada, que preparava o café. Levantou, com a cabeça pesada do vinho, e não tocou no assunto. Na noite anterior, por fé tinha certeza, Deus havia largado seus afazeres para estar com ele e espantar a solidão. Estava feliz e, bem-disposto, degustava um bauru de forma com cappuccino, já pensando na neve que tinha de remover da calçada.
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3 de fevereiro de 2010

A Parábola do Velho Boi

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Ainda sem pistas do atirador e do que teria motivado o crime, a Polícia Civil informou que intensificará as investigações. Assim, mais ou menos com essas palavras, Moisés, um experiente repórter policial, concluiu sua matéria sobre o atentado contra o prefeito de uma pequena cidade do interior, para a edição da manhã seguinte do jornal. O Estado e a cidade do ocorrido não vêm ao caso. Fato relevante é que o jornalista, por falta de provas, não pôde escrever tudo o que sabia.

Ao chegar em casa, em seu carro de luxo, tarde da noite, o prefeito foi abordado por um homem alto e magro, encapuzado, armado. Ao ser rendido, o prefeito temeu ser executado quando o homem de preto ordenou que ele deitasse no chão, de bruços, com as mãos na cabeça. Não obedeceu. Correu, aos gritos por socorro, e levou vários tiros.

Foi como nascer de novo. Teve a sorte de uma viatura da Polícia Militar cruzar em ronda pelo local, naquele exato momento, e acionar os socorristas do Corpo de Bombeiros. O prefeito foi levado ao hospital da cidade, entre a vida e a morte. O atirador, que por pouco não logrou êxito no atentado, fugiu sem deixar pistas.

Boceta! — exclamou Moisés.
Algum problema? — perguntou o colega de redação da mesa ao lado; um novato.
Eu sei o motivo do atentado e não posso contar.
E qual é?
Boceta, como eu disse antes.

Com 30 anos de experiência no jornalismo de porta de cadeia, Moisés pode não abrir caminho no Mar Vermelho, como seu xará bíblico, mas tem um faro para o crime melhor do que muitos investigadores. Ele sabia que não se tratava de um assalto. Caso fosse, o homem de preto teria demonstrado algum interesse pelo veículo ou, ainda, abordaria a vítima pátio adentro. O atentado também não era por motivação política, não em ano de eleições presidenciais em uma cidade que, com menos de 15 mil habitantes, interessa-se mesmo é pelas eleições municipais.

"Em off" – jargão jornalístico utilizado para dizer que uma informação é sigilosa e que não deve ser publicada – Moisés obteve de fonte segura uma importante declaração sobre o atentado: "foi vingança". O prefeito teria comido demais, e fora de casa. Nenhuma novidade em se tratando de uma prática tão antiga quanto a própria existência do homem e que teve como "adepto" até um ex-presidente dos Estados Unidos. O erro do prefeito foi mexer com a mulher de um policial.

O episódio remeteu outro experiente repórter, esse da editoria de esportes, a se lembrar da parábola do Velho Boi e do Touro Bezerro. Do alto de uma colina, o afoito Touro Bezerro bradou ao ver dezenas de novilhas a pastar no vale:

Vovô, vovô, vamos descer em desabalada carreira para, cada um de nós, pegar uma delas?
Não, meu neto. Vamos descer calma e mansamente, nos infiltrar entre elas e, então, traçar todas — aconselhou o Velho Boi.

O prefeito daquela pequena cidade fez como o vigoroso Touro Bezerro, aconselhado pelo Velho Boi: traçou todas que pôde, literalmente, inclusive a esposa do tira. Fosse ele um sábio, como o Velho Boi, teria medido as consequências. Não se trepa com a mulher de um homem que anda com pólvora na cintura, exceto se você for um sujeito do tipo Chuck Norris, James Bond, Batman e Cobain.

Tu tens certeza Moisés. Foi tudo por causa de uma relação extraconjugal? — questionou o colega novato.
Por uma boceta até grandes homens podem perder tudo, dinheiro, emprego, família, honra e até a própria vida.
Não dá para incluir isso na tua matéria?
Você é louco moleque! Não em uma cidade provinciana como a nossa. Além do mais, a fonte disse em off e não sustentaria a declaração — respondeu o experiente repórter, já de olho no relógio. — Nossa, oito da noite. Vamos comer algo?
Sim, desde que não seja a mulher do policial.
Não brinque com esse assunto, caro Touro Bezerro.
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