28 de fevereiro de 2011

Comilança

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Nada de televisão, redes sociais, videogame e passeio no parque. Vinho tinto e companhia da namorada? Nem pensar. Aquele fim de semana foi destinado exclusivamente ao estudo de inglês para um teste seletivo. Meu apartamento lembrava um monastério e o silêncio, bom enquanto durou, só foi quebrado pelo som alto vindo do "apê" da mãe enxuta e da filha violão. Pela ausência do carro delas na garagem, logo percebi: mãe viajou e filha aproveitou para aprontar todas. Novo no prédio, não fui convidado.

Era para ter ficado sozinho, porém, tive ilustres companhias.

O lanche no final da tarde de sábado, um macarrão com bacon requentado do almoço, rendeu um sono possessivo. Decidi me entregar aos apelos do corpo e tirei um bom cochilo no sofá. Melhor, só mesmo se estivesse chovendo. O barulho de chuva é divino, mas não foi o caso. Já era noite quando despertei e, para minha surpresa, tinha companhia  que entrou sem bater à porta.

"Uma bióloga", pensei, "sentiria-se à vontade em meu apartamento". Meu canto fora invadido por uma espécie de inseto preto, de sangue amarelo, menor que pernilongo. Despertei justamente no momento em que um deles tentava se abrigar em meu ouvido. Apanhei um frasco de veneno aerosol e parti para o ataque. "Uma bióloga", reavaliei, "não se sentiria à vontade em meu apartamento".

Quanto mais veneno passava, mais invasores apareciam. Estudando e sem poder apagar as luzes, que atraíam os insetos, fui obrigado a exercer o dom da paciência. Horas passaram e, sem notar o cansaço, peguei no sono. Outra vez no sofá! Quando se tem 30 anos, dormir duas vezes seguidas no sofá é dor nas costas na certa. Aos 18 anos, lembro bem, a resistência física era bem maior. Só não sinto saudades daqueles tempos porque, na época, não pegava ninguém.

Por falar em “pegação”...

Acordei cedo, com fome. Passei um café e preparei um bom sanduíche. Enquanto comia e me preparava psicologicamente para mais um round de estudos, notei a existência de outro habitante no apartamento. Um tipo de inseto verde, da metade do tamanho de um grilo. Havia uma meia dúzia deles. Tinham antenas compridas e se alimentavam daqueles insetos miúdos de sangue amarelo. Era a natureza fazendo sua parte: o maior comendo o menor. O mais forte tirando proveito da situação. Fosse no mundo dos humanos: o patrão pagando o mínimo possível para o empregado.

A tarde de domingo chegou ao fim e o teste de inglês, também. Não fui tão bem quanto esperava, mas não tenho do que me queixar. Azar quem teve foram os “grilos” verdes comedores de insetos pretos de sangue amarelo. Na minha ausência, as simpáticas lagartixas brancas, de olhinhos pretos arregalados, deram o ar da graça no apartamento. Fazia algum tempo que não apareciam. Tudo indica que elas  três ao todo  haviam devorado os grilos no jantar. Grilos verdes de antenas compridas devem estar para o paladar das lagartixas como o macarrão com bacon está para mim.

Mesmo no quinto andar de um prédio no Centro da cidade, a natureza tem seus encantos. As simpáticas lagartixas brancas comeram os intrépidos “grilos” verdes de antenas longas que comeram os minúsculos insetos pretos de sangue amarelo que comeram alguma coisa menor que eles para se reproduzir e que jamais ousarão invadir meu apartamento de novo. Diante de tamanha comilança, telefonei para a namorada para saber se ela toparia um cineminha. Ela topou e o vinho tinto foi ganhou espaço na geladeira, para fechar bem a noite, sem insetos.
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