9 de maio de 2011

Graças a Deus

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Bíblia debaixo do braço, terno e gravata a caminho da igreja, a pé, com sua esposa de cabelos compridos e saia preta até o chão. O sorriso de um santo estampado no rosto, como se debochasse de todos que cruzavam o seu caminho, todos pecadores. Sujeito, com essas qualidades, seguia seu rumo do outro lado da rua. Matheus, possivelmente, não tornaria a vê-lo, mas ficou por instantes a refletir se o pentecostal era, por dentro, tão feliz quanto seu sorriso supunha.

“Se tenho fé em Deus, logo, também sou um filho de Deus”, pensava. “Não sou menos filho de Deus porque minha garota é gostosa e usa shorts curto”, refletiu. Bíblia empoeirada no armário, camiseta xadrez e calça jeans a caminho da padaria, com sua namorada de camisola e nada mais, aguardando o pão francês quentinho para o café da manhã. Seguia seu rumo, do lado de cá da rua, a pensar na vida como fazia todo início de ano: “será que sou feliz?”

Matheus nunca foi do tipo religioso. Havia se afastado dos “irmãos” da igreja depois de um deles, que lembrava o jeito de santo do sujeito do outro lado da rua, associar inferno a sexo fora do casamento. Fora casado e, à época, sua vida era um inferno. Pecador ou não – por conta da companhia seminua em sua cama -, fazia suas orações toda noite antes de pegar no sono. Às vezes perguntava a Deus: “sou mesmo feliz?”

No silêncio de seus pensamentos, antes do “amém”, agradecia por ter saúde, por seus pais e irmãos terem saúde, por sua namorada ter saúde… no caso dela, uma saúde repleta de curvas! Lembrava da preocupação de seus pais para com o futuro dos filhos. Frequentou as melhores escolas e teve uma educação pautada nos princípios cristãos, porém, quando adolescente, era tomado por acne e as meninas não se interessavam por ele. Naqueles tempos, dizia com convicção: “não sou feliz!”

Cresceu, teve a primeira namorada, foi à faculdade, foi às festas da faculdade, teve outras namoradas, graduou-se bacharel e conseguiu seu primeiro emprego. Fez amigos cultos, alguns dos quais advogados, trocou de emprego, casou-se e dois anos depois precisou de um de seus amigos advogados, no processo de divórcio. A cada troca de emprego e de namorada, questionava-se: “isso me faz feliz?”

O salário estava longe de ser o sonhado. “Quem ganha bem é patrão, não empregado”, ouvia na “rádio corredor” da empresa. Há quem diga que se queixava de “barriga cheia”. Em cinco anos, havia conhecido cinco países e duas das novas maravilhas do mundo. Viajou ao litoral após anos sem ver o mar e as mulheres de biquíni. “Na piscina”, dizia, ao contemplar o oceano e o bronze alheio, “não é a mesma coisa”. Vindo da praia ou do exterior, o retorno à comodidade do lar enchia seu coração de dúvidas: “este lugar me faz feliz?”

No caminho de volta da padaria, o telefone tocou. Alguém chorava do outro lado da linha. Era uma mulher e a voz, soluçante, difícil de compreender. Suas pernas tremeram. Uma amiga de longa data, sobre um amigo de infância de Mateus e ex-namorado dela: “o paraquedas do Júlio não abriu”. A perda trouxe dias difíceis, tristeza e lágrimas. Trouxe reflexão. O paraquedismo, diante dos apelos maternos, Matheus deixou de lado. O azar poderia ter piscado para ele, ao invés de Júlio. Preferia o piscar dos olhos azuis e o shorts pouco comportados da namorada. Diante do risco de ir para o inferno, orava e agradecia a Deus: “viver me faz feliz!”
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