10 de julho de 2018

Sonhei com o Corinthians

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Noite fresca de outono, digna de um bom vinho tinto e de um prato saudável que me lancei a preparar para a família. No menu do dia, sopa de frango com caldo de abóbora cabotiá, com toque final de manjericão fresco da muda que eu ganhara semanas antes da amiga jornalista Juliana Daibert. A esposa aprovou, e repetiu, mas o gato Timbu deu apenas um golinho no caldo. Nessas horas, a família serve de cobaia em minhas incursões na cozinha.

O vinho e o jantar de quarta-feira, normalmente, acompanham a rodada do futebol. Na tevê, Corinthians e São Paulo pela semifinal do Paulistão 2018. No sofá, este jornalista, palmeirense, deliciava-se com a tensão alheia para conhecer o adversário do alviverde imponente na final. Em tese, todo palmeirense torce contra o Corinthians, mas naquele caso pouca diferença faria se o vitorioso fosse bambi ou gambá.

No segundo tempo, o zero a zero no placar despertou a irresistível vontade de zapear. Para quem cresceu em tempos analógicos, em que controle remoto não existia, trocar sucessivamente de canais sem levantar do sofá proporciona um prazer difícil de descrever. Quando percebi, estava envolvido com o Alienígenas do Passado, programa do History Channel que defende a tese de que seres de outros planetas tiveram importante papel no desenvolvimento de civilizações antigas.

Enfim, as histórias dos teóricos dos antigos astronautas me fizeram esquecer completamente do jogo e, quando lembrei de retornar ao canal de origem, o Corinthians tinha acabado de abrir o placar, nos acréscimos, levando a partida para os pênaltis. No momento decisivo, provavelmente sob bênção de São Jorge, o goleiro Cássio pegou duas e o Timão avançou à final. Ainda no sofá, peguei no sono minutos depois. E o sonho (pesadelo, talvez) que viria foi surreal.

Estávamos eu e os ex-colegas de redação Luiz de Carvalho e Welington Vainer saindo do estádio, onde tínhamos assistido àquele mesmo derby paulista. Nos tempos do jornal O Diário, Carvalho e Vainer eram parceiros do cafezinho da tarde em uma cafeteria na Avenida Brasil, de duas irmãs chamadas Val. Talvez pela influência subliminar desse convívio profissional diário eles tenham sido incluídos no sonho.

De repente, já estávamos em outro ambiente. Não sei dizer se era um pub ou uma cafeteria. Comentávamos sobre a ineficiência bambi – ao tomar o gol nos acréscimos – quando surgiu, todo ofegante, com a voz ligeiramente trêmula, um jogador do Corinthians. Ao menos no sonho, parecia muito se tratar de Romero, o atacante paraguaio.

— Eles foram embora sem mim — dizia, repetidas vezes, o jogador.
— Calma rapaz. Eles quem? — perguntou Carvalho.
— Meu time, o Corinthians. Esqueceram de mim — respondeu.
— Como é que um time esquece do jogador. Você não deve ser um cara importante, então — comentei.
— Que absurdo isso. Cadê o assessor do time numa hora dessas — reclamou Vainer, o único corintiano no recinto, além do jogador.

Discorríamos sobre o inusitado episódio quando Romero começou a chorar. De tão transtornado que estava, o corintiano custava a ouviu nosso convite para se acalmar. Nada como alguns goles de café, sem pensar nos problemas, para acalmar a alma.

— Rapaz, para que tanto desespero. Por que você não pega um táxi ou um uber? — questionou Carvalho.
— Não sei pra onde o time foi.
— Então, vai pra sua casa — sugeriu Vainer.
— Não lembro onde eu moro — respondeu o jogador, enxugando as lágrimas.
— Caramba. Depois dessa vou precisar mais de mais um café. Surreal — eu disse.

Parecia um pesadelo. Estávamos lá, entre goles de café, sem saber o que fazer com o corintiano. Ninguém queria se responsabilizar pelo cidadão, nem mesmo Vainer, que por ser do mesmo time tinha mais responsabilidades do que nós naquela situação. Se alguém tivesse de servir de babá, que fosse ele.

— Você que tem de levar o Romero embora — comentei, dando um tapinha nas costas do colega Vainer.
— É sim, é seu dever como corintiano — emendou Carvalho, aos risos.
— Não posso, vou pegar meu ônibus para Castelo em 15 minutos — retrucou Vainer, referindo-se à sua cidade, Presidente Castelo Branco, situada na região metropolitana de Maringá.

Ainda preocupado com o abandono, Romero disse estar sem dinheiro. Isso era ainda mais custoso de acreditar. Jogador de time grande sem grana? Devia ganhar por jogo, ainda que ficasse no banco, mais do que nós jornalistas num ano todo de trabalho.

O corintiano aceitou beber algo enquanto pensávamos no que fazer. Pediu achocolatado. Não tinha. Pediu fanta uva. Tinha. Vainer já havia vazado, como medo de ficar de babá. Éramos só Carvalho, eu e o jogador abandonado pelo Timão.

— Ele deve estar há muito tempo sem fazer gols, para ser esquecido desse jeito — eu disse a Carvalho.
— Nem sei. Prefiro ouvir jazz e ler livro a ver o Corinthians — respondeu Carvalho, sendo interrompido por Romero.
— Vocês não gostam de fanta uva?
— Não.
— Não.
— Por que não?
— Porque prefiro café — disse.
— Porque é bebida de criança — disse Carvalho. — Ou de bambi, e você é corintiano — acrescentou.

Para onde levar o cidadão, era essa a questão que pairava no ar. Para o albergue? Para a delegacia? Ou seria melhor ligar para o Conselho Tutelar? Muitas ideias surgiam quando, ao longe, notamos o amigo Rodrigo Parra se aproximar, com sua bike. Também jornalista, e fanático pelo Timão, Parra haveria de saber o que fazer.

— Parra, nos ajude por favor. Não sabemos o que fazer com este jogador — eu disse.
— Romero, o que você está fazendo aqui com um palmeirense? — perguntou Parra.
— Tomando fanta uva.
— Certo, deu para notar. Mas você não deveria ter viajado com o time? — tornou a perguntar Parra.

Nos instantes seguintes, Romero repetiu toda a história da má sorte do abandono, e tornou a chorar. Parra acalmou o jogador e tranquilizou a todos com sua resposta.

— Eu sei onde ele mora. Vou levá-lo para casa — disse.
— Ufa — respondi.
— Ainda bem. Como você vai levá-lo? — questionou Carvalho.
— No quadro da magrela, onde mais — respondeu Parra.

Em alguns cantos do país, o quadro da bike se chama "varão". Logo, Parra levou Romero para casa no varão. Acordei a rir disso, no sofá, horas depois do fim do jogo, pasmo pelo sonho bizarro que acabara de ter. Tomei um copo d'água, tornando a rir da situação do Romero, e fui para a cama acompanhar a esposa e o felino no descanso noturno. Não é todo dia que se tem um pesadelo desses com o time rival.


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