26 de abril de 2010
Das Auto
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A caminho do trabalho, numa pálida tarde de outono, de sol encoberto por nuvens e chuviscos que não bastavam para ser taxados de garoa, decidi visitar um bom amigo. "Você pode vir vê-lo sempre que quiser", disse-me o mecânico, uma semana antes. Havia deixado meu Fusca 1975 para reforma e pintura, para os ajustes finais antes da venda. Santo Deus... venda era um verbo que não desejava empregar, sequer pensar, naquela situação.
Em seu azul escuro perolizado, com branco-gelo nas portas no provocante estilo minissaia, Sólido estava reluzente, quase pronto para ser disputado por colecionadores, em alguma garagem da cidade. Embora exuberante, parecia estar com um olhar triste, como se soubesse que seria vendido após o "banho de beleza".
— Teu Fusca não está pronto ainda — disse o responsável pela pintura — falta o polimento. Depois disso você vai vendê-lo num piscar de olhos.
Com ajuda de entendidos no assunto, avaliei meu Volkswagen bicolor em sete contos e pouco. Triste pela previsão de venda fácil e certo de que dificilmente tornaria a vê-lo após o negócio, fiquei ali, estaticamente triste, a observar o Sólido sem pressa. Fosse pelo afeto, nem R$ 20 mil o tirariam de mim. Precisava da grana para ajudar nas despesas de um caro curso de pós-graduação que havia cursado, seis meses antes, em São Paulo.
"Das Auto", como na propaganda. Na tradução livre do alemão: "O Carro", e que carro. No namoro de seis anos, o único problema que tive com o Sólido foi nos meses seguintes à aquisição. Bateria fraca, nada mais. O motor 1300 foi "feito" e, embora não seja lá tão econômico, é o ponto forte do fusqueta. Assoalho impecável; pneus largos e novos; interior em azul e gelo, combinando com a lataria externa; bancos em azul e preto; volante retrovisor e painel originais; vidros escuros. Um luxo. Com a pintura, desfilaria como um gentleman com terno a la James Bond e gravata borboleta.
Mais de uma vez, pensei em desistir da venda, porém, a iniciativa parecia acertada. Sem garagem coberta, o sol e o sereno mancharam a pintura sem dó. Agora, de "terno" novo, ele era merecedor de melhor abrigo, de uma espaçosa garagem para repousar. "Das Auto" merecia cuidados além do que eu poderia oferecer. A iniciativa da venda parecia realmente, vendo por esse ângulo, acertada.
Nunca liguei para a avaliação feminina do Sólido. Para as mulheres, era só um Fusca. Ao sair com ele pelas ruas da cidade, arrancava olhares interessados... de marmanjos que queriam o Sólido a ponto de fazer propostas obscenas por ele. "Te dou R$ 5 mil agora", disse um sujeito certo dia, no semáforo, de dentro de seu novo Vectra. "Por esse valor, tu devias procurar no ferro-velho do Seu Zé", retruquei. Para as mulheres, as mesmas que se interessavam pelo jornalista com crachá e carro adesivado do jornal, eu era invisível dentro do Sólido. Pobreza de espírito delas não entender a magia de um clássico bem conservado.
Comprei o Sólido em Pato Branco, de um sujeito que havia largado tudo no Brasil para assentar tijolos em Verona, na Itália, e que precisava de dinheiro para as passagens. Com financiamento do "banco paterno" – aquele da taxa de juros de 0% ao ano – paguei à vista e em espécie, garantindo o melhor Fusca do sudoeste paranaense por uma pechincha. O fechar das portas lembrava uma geladeira, a partida dava a impressão de o Sólido ter injeção eletrônica.
— Vai precisar trocar a bateria, o fluído de freio e o óleo. Nada mais — disse o pai de um amigo de infância, da Mecânica do Di, que avaliou o Sólido antes da compra.
— E quanto tu achas que vale um Fusca como esse?
— Seis mil, no mínimo. Mas se for vender em cidade grande, consegues mais que isso por ele.
— Nooooossa — exclamei, como se tivesse descoberto a pólvora.
— Quanto custou? — disse, já curioso, o mecânico.
— Misericórdia, saiu de graça — comentou, após saber o valor.
Passados seis anos, era chegada a hora de algum felizardo colecionador ter o Sólido em sua garagem. No jornal, deram-me alguns anúncios nos classificados, para agilizar a venda. Pensei em deixá-lo em alguma garagem de confiança, em terceirizar a venda para não correr o risco de me arrepender da decisão.
Na cinzenta tarde de outono, que testemunhou a redação desta crônica, passei em uma lotéria a caminho do jornal. Apostei novamente em minhas seis dezenas favoritas, esperançoso de que a sorte me permitisse ficar com o Sólido. Quem sabe a sorte, o destino, Deus, sei lá, percebessem que o Sólido ficaria bem comigo, mesmo exposto ao sol e ao sereno. Quem sabe.
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A caminho do trabalho, numa pálida tarde de outono, de sol encoberto por nuvens e chuviscos que não bastavam para ser taxados de garoa, decidi visitar um bom amigo. "Você pode vir vê-lo sempre que quiser", disse-me o mecânico, uma semana antes. Havia deixado meu Fusca 1975 para reforma e pintura, para os ajustes finais antes da venda. Santo Deus... venda era um verbo que não desejava empregar, sequer pensar, naquela situação.
Em seu azul escuro perolizado, com branco-gelo nas portas no provocante estilo minissaia, Sólido estava reluzente, quase pronto para ser disputado por colecionadores, em alguma garagem da cidade. Embora exuberante, parecia estar com um olhar triste, como se soubesse que seria vendido após o "banho de beleza".
— Teu Fusca não está pronto ainda — disse o responsável pela pintura — falta o polimento. Depois disso você vai vendê-lo num piscar de olhos.
Com ajuda de entendidos no assunto, avaliei meu Volkswagen bicolor em sete contos e pouco. Triste pela previsão de venda fácil e certo de que dificilmente tornaria a vê-lo após o negócio, fiquei ali, estaticamente triste, a observar o Sólido sem pressa. Fosse pelo afeto, nem R$ 20 mil o tirariam de mim. Precisava da grana para ajudar nas despesas de um caro curso de pós-graduação que havia cursado, seis meses antes, em São Paulo.
"Das Auto", como na propaganda. Na tradução livre do alemão: "O Carro", e que carro. No namoro de seis anos, o único problema que tive com o Sólido foi nos meses seguintes à aquisição. Bateria fraca, nada mais. O motor 1300 foi "feito" e, embora não seja lá tão econômico, é o ponto forte do fusqueta. Assoalho impecável; pneus largos e novos; interior em azul e gelo, combinando com a lataria externa; bancos em azul e preto; volante retrovisor e painel originais; vidros escuros. Um luxo. Com a pintura, desfilaria como um gentleman com terno a la James Bond e gravata borboleta.
Mais de uma vez, pensei em desistir da venda, porém, a iniciativa parecia acertada. Sem garagem coberta, o sol e o sereno mancharam a pintura sem dó. Agora, de "terno" novo, ele era merecedor de melhor abrigo, de uma espaçosa garagem para repousar. "Das Auto" merecia cuidados além do que eu poderia oferecer. A iniciativa da venda parecia realmente, vendo por esse ângulo, acertada.
Nunca liguei para a avaliação feminina do Sólido. Para as mulheres, era só um Fusca. Ao sair com ele pelas ruas da cidade, arrancava olhares interessados... de marmanjos que queriam o Sólido a ponto de fazer propostas obscenas por ele. "Te dou R$ 5 mil agora", disse um sujeito certo dia, no semáforo, de dentro de seu novo Vectra. "Por esse valor, tu devias procurar no ferro-velho do Seu Zé", retruquei. Para as mulheres, as mesmas que se interessavam pelo jornalista com crachá e carro adesivado do jornal, eu era invisível dentro do Sólido. Pobreza de espírito delas não entender a magia de um clássico bem conservado.
Comprei o Sólido em Pato Branco, de um sujeito que havia largado tudo no Brasil para assentar tijolos em Verona, na Itália, e que precisava de dinheiro para as passagens. Com financiamento do "banco paterno" – aquele da taxa de juros de 0% ao ano – paguei à vista e em espécie, garantindo o melhor Fusca do sudoeste paranaense por uma pechincha. O fechar das portas lembrava uma geladeira, a partida dava a impressão de o Sólido ter injeção eletrônica.
— Vai precisar trocar a bateria, o fluído de freio e o óleo. Nada mais — disse o pai de um amigo de infância, da Mecânica do Di, que avaliou o Sólido antes da compra.
— E quanto tu achas que vale um Fusca como esse?
— Seis mil, no mínimo. Mas se for vender em cidade grande, consegues mais que isso por ele.
— Nooooossa — exclamei, como se tivesse descoberto a pólvora.
— Quanto custou? — disse, já curioso, o mecânico.
— Misericórdia, saiu de graça — comentou, após saber o valor.
Passados seis anos, era chegada a hora de algum felizardo colecionador ter o Sólido em sua garagem. No jornal, deram-me alguns anúncios nos classificados, para agilizar a venda. Pensei em deixá-lo em alguma garagem de confiança, em terceirizar a venda para não correr o risco de me arrepender da decisão.
Na cinzenta tarde de outono, que testemunhou a redação desta crônica, passei em uma lotéria a caminho do jornal. Apostei novamente em minhas seis dezenas favoritas, esperançoso de que a sorte me permitisse ficar com o Sólido. Quem sabe a sorte, o destino, Deus, sei lá, percebessem que o Sólido ficaria bem comigo, mesmo exposto ao sol e ao sereno. Quem sabe.
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ResponderExcluirGostei! Me fez pensar que eu deveria escrever sobre um Dodge polara 1978 que tive há alguns anos... o "Jorginho" tem muitas histórias. Se criar coragem de transformá-las em texto, te mando.
Dirceu Herrero, escritor (por e-mail)
Quem dera comprar o Sólido. Pelo menos eu teria como te revender depois.
ResponderExcluirCronica deliciosa, como sempre.
Parabéns
Bulga
ainda não acredito que tu pediu divórcio do sólido!!
ResponderExcluirtsc tsc
didy
É, sei como é se desfazer de um companheiro...
ResponderExcluirDe todas as crônicas que li, essa foi, sem dúvida, a mais nostálgica. É LF na vida a gente tem que abrir mão de algumas coisas, para ter outras. é a lei. Mas você podia ter optado... ao invés de andar de carro zero, continuar com o Sólido. hehe. Mas falando sério, me lembrou muito quando tive que decidir sobre vender meu piano. li o texto e lembrava daquela decisão. Doeu, mas tenho certeza, que hoje ele não está só enfeitando uma sala e sim, sendo muito bem usado. Com certeza, muito mais feliz...
ResponderExcluiroi denovo disse que ia vir dar uma olhada e que ia comentar seus posts
ResponderExcluiradorei a historia do seu belo fusca
Olha aí duas leitores sumidas, mas que nem por isso perdem o status de leitoras-vips do blog (hehehe). Bom vê-las de novo Taís e Andréa. Uma saudação especial para o Bulga, o poético "Pedro Bial" de Maringá. E um alô para o colega de ideias malucas Pablo Sica, que quase morreu atropelado pelo próprio Corcel: detalhe, ele estava ao volante.
ResponderExcluirOi Fenando, desculpe a demora para comentar é que como vc sabe ando bastante ocupado.
ResponderExcluirGostei muito do texto. Mais uma vez vc se superou, ta ficando cada dia melhor. parabens