30 de setembro de 2010
Sabores e dissabores do jornalismo
.
"Ser jornalista tem seus dissabores". Mortal perdeu as contas de quantas vezes ouviu essa frase o dono do jornal onde trabalhara após concluir a faculdade de Jornalismo. Preferia não acreditar na sentença, porém, passados sete anos desde que o "canudo" lhe foi entregue em mãos na colação de grau, dava a cada nova semana de trabalho mais razão ao ex-patrão. Nem sempre viver da escrita seria prazeroso.
O jovem repórter de Política havia tido um dia de merda, profissionalmente falando. Para piorar, uma infecção na garganta o impedia de recorrer ao melhor anti-stress já inventado: chope trincando de gelado, com colarinho. Além do mais, o álcool cortaria o efeito dos antibióticos. Vale um Prêmio Nobel, no mínimo, a quem inventar um antibiótico efervescente para ser diluído em caneca de chope ou taça de vinho.
- O senhor já foi atendido? - questionou a atendente da cafeteria.
- Não me chame de senhor, nem 30 anos eu tenho.
- Você já foi atendido? - insistiu, educadamente, a atendente.
- Me desculpe, tive um péssimo dia. Quero um café com álcool, o mais forte que você tiver. E que se dane os antibióticos.
- Como?
- Nada não. O café demora?
- Dois minutinhos, no máximo.
Aquela sexta-feira teve tudo para ser a melhor do ano para Mortal. Na pauta, ele precisava entregar uma reportagem sobre o gasto excessivo de alguns dos deputados federais da bancada paranaense durante o recesso parlamentar. Na apuração das verbas indenizatórias, o repórter descobriu que um único deputado havia gastado mais de R$ 20 mil com passagens aéreas. No mês de descanso dos deputados, gastos com combustível e locação de veículos indicavam que o dinheiro público, restrito à atividade parlamentar, fora usado na campanha eleitoral.
Mortal tinha uma baita história em mãos e, melhor, tinha como sustentar o conteúdo da reportagem. Os dados eram públicos e constavam da página da Transparência da Câmara, na internet. Um pouco de paciência e tabulação dos dados haviam apontado dados curiosos. No recesso, deputados que concorriam à reeleição haviam gastado até 75 vezes mais do que parlamentares que não estavam em campanha.
- E tua matéria, como anda? - perguntou Moisés, o repórter de polícia, vizinho de mesa de Mortal.
- Está quase pronta. Aposto que vai virar manchete.
Em redações de pequeno e médio porte, repórteres de jornal diário raramente podem se dedicar a apenas uma matéria por dia. Mortal teve três dias para trabalhar nos gastos dos parlamentares. A expectativa era grande, talvez até maior do que a do primeiro encontro com uma mulher especial.
Ao final do expediente, já no início da noite, a vinda do editor-chefe até o posto de trabalho de Mortal era sinal de que algo havia dado errado. "Onde há fumaça há fogo"... e o ditado se aplica também, e muito bem, ao jornalismo. Sr. Reuters costumava se dirigir à mesa de um repórter apenas para levar alguma má notícia. Teria sido a reportagem investigativa demais para ganhar as páginas do jornal?
- Rapaz, lutei pela publicação da tua matéria, mas não teve jeito - disse Reuters, aparentemente desapontado com o veto editorial.
- Qual o problema com a matéria. Algum erro? - questionou Mortal.
- O conteúdo da reportagem traria sérios problemas para o jornal.
- Problemas políticos?
- Políticos e financeiros - comentou o editor-chefe.
A matéria era, sim, investigativa demais. Dois deputados, muito chegados do dono do jornal, estavam entre os gastões do período de recesso parlamentar e a reportagem, certamente, acarretaria prejuízo eleitoral a ambos. Em outras palavras, o eleitor mais politizado poderia se dar conta do uso indevido e abusivo do dinheiro público, optar por candidatos de melhor índole e, quem sabe, fazer campanha contra os gastões. Com a matéria, o eleitor ganharia mais subsídios para o voto consciente e o repórter, a conta no dia seguinte. Eis um um bom exemplo de dissabor na profissão.
Naquela sexta-feira, que começou empolgante e terminou melancólica, nem o café mais alcoólico aliviaria o estresse. Nem mesmo um chope com antibiótico efervescente teria esse poder. A melhor matéria de Mortal, no ano, havia sido arquivada. O dissabor da conveniência política permaneceu, por dias, entalado na garganta. Aliás, a garganta melhorou bem antes do dia da eleição, que revelou uma agradável surpresa: um dos deputados "amantes do dinheiro público", amigo do dono do jornal, não foi reeleito. Ser jornalista tem também seus sabores.
Publicado também em: Master em Jornalismo
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"Ser jornalista tem seus dissabores". Mortal perdeu as contas de quantas vezes ouviu essa frase o dono do jornal onde trabalhara após concluir a faculdade de Jornalismo. Preferia não acreditar na sentença, porém, passados sete anos desde que o "canudo" lhe foi entregue em mãos na colação de grau, dava a cada nova semana de trabalho mais razão ao ex-patrão. Nem sempre viver da escrita seria prazeroso.
O jovem repórter de Política havia tido um dia de merda, profissionalmente falando. Para piorar, uma infecção na garganta o impedia de recorrer ao melhor anti-stress já inventado: chope trincando de gelado, com colarinho. Além do mais, o álcool cortaria o efeito dos antibióticos. Vale um Prêmio Nobel, no mínimo, a quem inventar um antibiótico efervescente para ser diluído em caneca de chope ou taça de vinho.
- O senhor já foi atendido? - questionou a atendente da cafeteria.
- Não me chame de senhor, nem 30 anos eu tenho.
- Você já foi atendido? - insistiu, educadamente, a atendente.
- Me desculpe, tive um péssimo dia. Quero um café com álcool, o mais forte que você tiver. E que se dane os antibióticos.
- Como?
- Nada não. O café demora?
- Dois minutinhos, no máximo.
Aquela sexta-feira teve tudo para ser a melhor do ano para Mortal. Na pauta, ele precisava entregar uma reportagem sobre o gasto excessivo de alguns dos deputados federais da bancada paranaense durante o recesso parlamentar. Na apuração das verbas indenizatórias, o repórter descobriu que um único deputado havia gastado mais de R$ 20 mil com passagens aéreas. No mês de descanso dos deputados, gastos com combustível e locação de veículos indicavam que o dinheiro público, restrito à atividade parlamentar, fora usado na campanha eleitoral.
Mortal tinha uma baita história em mãos e, melhor, tinha como sustentar o conteúdo da reportagem. Os dados eram públicos e constavam da página da Transparência da Câmara, na internet. Um pouco de paciência e tabulação dos dados haviam apontado dados curiosos. No recesso, deputados que concorriam à reeleição haviam gastado até 75 vezes mais do que parlamentares que não estavam em campanha.
- E tua matéria, como anda? - perguntou Moisés, o repórter de polícia, vizinho de mesa de Mortal.
- Está quase pronta. Aposto que vai virar manchete.
Em redações de pequeno e médio porte, repórteres de jornal diário raramente podem se dedicar a apenas uma matéria por dia. Mortal teve três dias para trabalhar nos gastos dos parlamentares. A expectativa era grande, talvez até maior do que a do primeiro encontro com uma mulher especial.
Ao final do expediente, já no início da noite, a vinda do editor-chefe até o posto de trabalho de Mortal era sinal de que algo havia dado errado. "Onde há fumaça há fogo"... e o ditado se aplica também, e muito bem, ao jornalismo. Sr. Reuters costumava se dirigir à mesa de um repórter apenas para levar alguma má notícia. Teria sido a reportagem investigativa demais para ganhar as páginas do jornal?
- Rapaz, lutei pela publicação da tua matéria, mas não teve jeito - disse Reuters, aparentemente desapontado com o veto editorial.
- Qual o problema com a matéria. Algum erro? - questionou Mortal.
- O conteúdo da reportagem traria sérios problemas para o jornal.
- Problemas políticos?
- Políticos e financeiros - comentou o editor-chefe.
A matéria era, sim, investigativa demais. Dois deputados, muito chegados do dono do jornal, estavam entre os gastões do período de recesso parlamentar e a reportagem, certamente, acarretaria prejuízo eleitoral a ambos. Em outras palavras, o eleitor mais politizado poderia se dar conta do uso indevido e abusivo do dinheiro público, optar por candidatos de melhor índole e, quem sabe, fazer campanha contra os gastões. Com a matéria, o eleitor ganharia mais subsídios para o voto consciente e o repórter, a conta no dia seguinte. Eis um um bom exemplo de dissabor na profissão.
Naquela sexta-feira, que começou empolgante e terminou melancólica, nem o café mais alcoólico aliviaria o estresse. Nem mesmo um chope com antibiótico efervescente teria esse poder. A melhor matéria de Mortal, no ano, havia sido arquivada. O dissabor da conveniência política permaneceu, por dias, entalado na garganta. Aliás, a garganta melhorou bem antes do dia da eleição, que revelou uma agradável surpresa: um dos deputados "amantes do dinheiro público", amigo do dono do jornal, não foi reeleito. Ser jornalista tem também seus sabores.
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Qual profissão que não carrega seus dissabores, afinal? No meio de tanta "palhaçada" em meio a política atual, é inevitável o pranto. Ainda mais pra um jornalista...
ResponderExcluirAinda assim, os sabores prevalecem :)
Postei a crônica na madrugada de 18 de outubro de 2010, porém, com data de 30 de setembro do mesmo ano. Foi esta última a data da conclusão da crônica, que ficou de molho até o término do primeiro turno das eleições. Sendo assim, consegui o desejado bom final para o texto.
ResponderExcluirDo autor.