9 de agosto de 2018

Homem de bem

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A hora do jantar, em família, é sagrada para José Borges, 45 anos, casado, pai de um filho pequeno. Na mesa, a apetitosa comida estava ainda mais saborosa desde a reconciliação com sua senhora. Ficaram brigados por algumas semanas, depois que a raiva dele resultou em hematomas nela. Foi um desentendimento "por amor", dizia ele.

Borges jantava seu prato favorito, frango frito com batata inglesa assada, temperada com pimenta do reino, salsinha e azeite de oliva; quando o telefone fixo tocou.

— Poxa vida, bem na hora do jantar. Atende lá mulher, que eu trabalhei o dia inteiro.

A esposa estava exausta após a faxina, os cuidados com o filho, as compras no supermercado, os preparos do jantar, as aulas do curso de graduação a distância. Ainda assim, levantou-se da mesa e atendeu a ligação, sem reclamar.

— É seu amigo Nico. Quer falar contigo.
— Tem de ser agora?
— Ele insiste que é urgente.

Ainda mastigando um bocado de frango frito, Borges apanhou o telefone.

— Fala brother.
— Zé, seu celular está desligado? Tentei te ligar e não atendeu.
— Parou de funcionar. Vou procurar aquele ambulante filho da mãe para reclamar.
— Já te disse para não comprar na rua. Pode ser aparelho roubado — advertiu Nico.
— Mas diga lá, o que há de tão urgente?
— Você não viu? Seu vídeo passou na tevê para o país inteiro!

Ah, quem diria! O vídeo despretensioso de Borges, gravado na horizontal conforme as recomendações dos jornalistas da emissora, havia sido selecionado para o quadro “O Brasil que eu Quero”. A estratégia de gravar em frente à igreja matriz, cartão-postal da pequena cidade, pelo visto fora acertada.

Nos minutos seguintes, mais ligações atendidas pela esposa e outras interrupções no frango com batatas. Eram outros amigos contando a boa nova. No aplicativo de mensagens, que ele não podia acessar sem seu smartphone, Borges podia imaginas as centenas de felicitações pelo feito.

Zé, para os mais chegados, era um sujeito conhecido, benquisto na sociedade local. Motivo que explica os telefonemas. Após um dia puxado, Borges se sentia merecedor daqueles segundos de fama. Parecia um jovem youtuber com o sorriso no rosto pelo primeiro vídeo com um milhão de acessos.

Antes de revelar o conteúdo do vídeo que ganhou as telinhas de todo o Brasil, vale a pena relembrar o atarefado dia desse distinto cidadão. Pela manhã, pulou da cama por volta das 7h30. Deu uma rápida zapeada nos incontáveis canais de sua “gratuita” skygato. Reclamou do café da manhã: “Omelete, de novo”. Saiu sem se despedir da mulher, que acordara uma hora e meia antes passar o café e preparar a papinha do bebê.

Na saída de casa teve o segundo incômodo do dia – o primeiro fora a omelete. Na caixinha das correspondências, uma do departamento de trânsito o informava sobre uma multa tomada dias antes por avanço de sinal vermelho. "O que tem de passar um pagador de impostos nesse país injusto", esbravejou Borges, em pensamento.

Um pouco atrasado por conta da leitura da correspondência, trafegou cinco metros na contramão para não precisar dar toda uma volta no quarteirão. Ao menos ali, a prefeitura não havia instalado câmeras de vigilância para flagrar infrações de trânsito. Para Borges, as lideranças municipais deveriam se preocupar mais com bandidos, ao invés de punir gente de bem com uma “indústria da multa”.

Menos de dez minutos depois, o apressado condutor já estava na Câmara Municipal. Cargo, assessor parlamentar; salário, R$ 5 mil. Não tinha jornada definida de trabalho. Na verdade, dava as caras no gabinete duas ou três vezes por semana, e devolvia 40% do rendimento mensal para o vereador. O repasse ajudava a compor o caixa dois da campanha seguinte. Trabalho duro, mesmo, só no período de eleições, sob risco de seu parlamentar perder o mandato e, ele, a boquinha generosa. No poder público, sempre há teta para mais um.

Quando dava as caras, a permanência na Casa de Leis costumava ser de meia hora, salvo duas exceções: em dia de sessão com projeto de lei polêmico envolvendo seu vereador e quando a assessora gostosa de outro parlamentar estava na área, dando sopa. Sempre rolava uma paquera, ao menos da parte dele, na cantina dos funcionários do Legislativo, onde não havia câmeras.

— Jordana não está por aí hoje? — perguntou Borges, sobre a cobiçada assessora parlamentar.
— Tome jeito, Zé — respondeu a secretária do vereador, um sujeito de extrema direita, pouco dado a minorias e “gente da senzala”, como o próprio edil costuma dizer.

O vereador tinha grande estima por Borges, “um dos seus”, apesar das passagens do assessor pela polícia por agressão doméstica e injúria racial. Contudo, o parlamentar, um moralista, desaprovava as cantadas do assessor casado à colega do Legislativo. O que diriam os eleitores se descobrissem. Entre seus apoiadores nas urnas estava fiéis da Galáxia do Reino de Deus, algo assim.

— Bom, já que a gatinha do gabinete vizinho não está, vou cair na estrada.
— Com esse tempo de chuva, Zé?
— Sim, as encomendas não param. Quer alguma coisa?
— Duas garrafas de gim. Não esquece.

Por conta de seu horário flexível na Câmara, Borges tinha tempo de sobra para suas idas e vindas do Paraguai. Com as muambas, conseguia triplicar as rendas do mês. Trazia de tudo, laptops, iPhones, pneus, televisores de tela plana, videogames, cigarros etc. Só não mexia com drogas ilícitas, porque homem de bem tem de dar bom exemplo.

Deu azar uma única vez. Foi pego na aduana, perdeu tudo o que estava acima da cota limite e aprendeu com aquela dura lição. Agora, Borges faturava ainda mais ao voltar do "Paragua" com sua caminhonete abarrotada de produtos. O esquema na fronteira era bom para ele e para os fiscais, que ganhavam uma gorjeta generosa por semana para fazer vista grossa. O próprio vereador, ambulante antes de ser eleito, foi quem lhe ensinou o caminho das pedras, ou melhor, da "fiscalização zero".

No retorno à cidade natal, para não perder o hábito, parou na estrada para tomar sua caninha. Na casa das primas, tinha a carícia certa lhe aguardando. Pagava bem para escolher, e escolhia a opção mais arrebitada. “Isso é coisa de homem”, já dizia seu avô. “Homem é assim mesmo”, dizia sua avó, conformada. Àquela altura, a esposa já havia posto a mesa do jantar.

Pegar estrada esburacada não é tarefa fácil. Quando chovia forte, como era o caso naquele dia, Borges reduzia a velocidade e bebia apenas uma cachacinha, sem a saideira. Varado de fome, deixou as encomendas para entregar na manhã seguinte, já que não precisaria bater ponto na Câmara.

Aliás, meses antes, Alves, o parlamentar esquerdista FDP, tentara impor a obrigatoriedade de ponto biométrico na Casa de Leis, mas, felizmente, seu vereador havia conseguido o apoio da maioria para vetar a proposta. A "normalidade" de sempre seguia sendo a regra.

— Olá, Zé, como foi seu dia? — perguntou a esposa, no retorno do marido ao lar.
— Muito puxado, como sempre. O trânsito na fronteira e o vai e vem dos muambeiros nas lojas me estressam, você sabe. E com a chuva, pior ainda.
— E na Câmara, tudo certo?
— Não tinha nada para fazer lá. O dia de receber os pobres pedintes no gabinete é só na semana que vem.

A pergunta da esposa sobre a Câmara não era por suspeita da paquera indevida, mas por preocupação. Ela tinha ouvido na rádio, enquanto limpava a casa, que o promotor estava investigando denúncia de funcionários fantasmas.

— O quê? Que promotor desocupado. Não tem bandido para prender não?
— Isso te preocupa?
— Claro que não, porque o trabalho de um bom assessor é na rua, falando com o povo.
— Quem você acha que fez essa denúncia?
— O FDP do Alves, com certeza. 

Como a mesa já estava posta, Borges desandou a comer. Foi quando o telefone tocou. O assessor chegou a pensar que seria seu vereador, mas era o amigo Nico, trazendo a boa nova. O que os amigos viram na telinha foi um Zé boa pinta, gel no cabelo, camisa branca bem passada, pedindo no horário nobre por “um país com melhores estradas, com menos impostos e sem corrupção”. Um belo discurso, digno de um cidadão de bem, apesar da hipocrisia.


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