29 de janeiro de 2009

Orfeu e Violeta

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A véspera de Natal não tinha sido das melhores. Passar a "ceia" dentro de um ônibus praticamente vazio não foi uma experiência agradável. Ter ao lado um senhor com hálito duvidoso, com "síndrome" de moto-serra na garganta, apenas piorou a situação. Orfeu, um quase balzaquiano com quase 1,80 metro, sempre preferiu a poltrona nove, na janela do lado do motorista, ou a 12 na janela do outro lado do corredor. Tinha fobia dos demais assentos, assim, esperava que o velhinho fosse, ao menos no Natal, um bom velhinho.

Mas não houve piedade, o idoso que vestia uma surrada camisa do São Paulo, com Raí e seu número 10 estampado nas costas, quis viajar na poltrona dez, talvez para combinar. Como a 12 estava ocupada, indignado, Orfeu tomou um Dramin e meio para ficar "surdo" por algumas horas.

O rapaz tinha ido passar as festas com a família, em Pato Branco, no sudoeste do Paraná. Com alguma dificuldade e uma boa dose de diplomacia, havia conseguido uma breve folga no trabalho, para compensar "meses" de hora extra. Contudo, depois de beber espumante e comer peru com os pais e os dois irmãos, estava de malas prontas para retornar a Maringá, no noroeste do Paraná. Novamente, a viagem seria na poltrona nove, sob torcida de que na dez não surgisse outro “Papai Noel” com camisa tricolor.

Entre as duas cidades, 11 horas de viagem, ônibus quase lotado, com lugares livres apenas próximo ao banheiro. Era 28 de dezembro, um domingo de calor e céu nublado, 18h30 quando Orfeu apresentou passagem e documento para o embarque. Queria permanecer alguns dias a mais na cidade de Alexandre Pato, Rogério Ceni, Alceni Guerra, Bozena e Zezinho (aquele que perdeu um gol decisivo na marca fatal), mas o dever o chamava em Maringá, a cidade das árvores floridas, que havia escolhido para ser feliz.

Ao entrar no ônibus, como de praxe, e devidamente equipado com seus óculos – para corrigir um grau de astigmatismo em cada vista –, Orfeu fez um apanhado geral do cenário. Algumas pedras a lapidar, nada de esmeraldas ou ametistas. Na poltrona dez, que dias antes havia pertencido ao Raí de 2050, figurava então um agrônomo simpático, mas que não se interessava nem por esportes nem por política, apenas pelos novos híbridos de soja e de milho, segundo ele mais resistentes às pragas. Um bom sinal: o "sucrilhos" com leite de soja, no café da manhã, estaria garantido às futuras gerações.

Ainda não tinha escurecido quando o ônibus parou na rodoviária da cidade rival de Pato Branco... Francisco Beltrão. Terra de mulheres bonitas, com tanto potencial para formar misses (Miss Brasil tiveram uma, Miss Paraná, várias) quanto Pato Branco para lançar jogadores de futebol. Levado a refletir sobre o porquê de as misses beltronenses não se casarem com os jogadores pato-branquenses, Orfeu sacou da mochila um livro que havia ganhado de presente de Natal, de um amigo de infância. "Anjos Brancos à beira do inferno", a história dos bastidores daquele Real Madrid dos galácticos Ronaldo, Zidane, Figo, Raul, Beckham e Roberto Carlos.

Ler. Foi o que fez Orfeu de Beltrão até a parada para o jantar, lá pelas 22 horas, num restaurante de beira de estrada entre uma pequena cidade, chamada Realeza, e Cascavel. Além de ler, fez pouco mais do que respirar. Centrado na história dos galácticos, não prestou atenção nas paradas anteriores do ônibus. Quando o motorista falou em bom tom: "paraaaaaada para o jantar, 30 minutos", fechou o livro num piscar de olhos. A fome do estômago, naquela altura, era bem maior do que a fome do conhecimento.

Mais uma vez, Orfeu estava convicto de que, se viajasse de carro, não pararia para comer naquele restaurante. O café era bom, mas no repertório de lanches nada de assados; pão de batata com catupiry nem pensar. Só salgados fritos, reluzentes de tanto óleo. Como um eleitor que se depara com candidatos despreparados – e tem a árdua tarefa de escolher o menos mau –, pediu pão-de-queijo para o jantar. Comeu engolindo, mas o café ele bebeu saboreando cada gole, e repetiu, duas vezes. Certamente teria de utilizar o banheiro do ônibus, mais tarde.

Da parada de meia hora, precisou apenas de 15 minutos para alegrar o estômago, ir ao banheiro, provar uns bonés made in China vindos do Paraguai – revendidos na lojinha de miudezas do restaurante, onde os fiscais, como todos os outros, só param para comer – e, por fim, pagar a conta. Quando estava para deixar o recinto com aroma de fritura, Orfeu fez o devido reconhecimento do cenário, desta vez, involuntariamente, como se estivesse condicionado a garimpar pedras preciosas durante aquela viagem.

As esmeraldas, encontradas principalmente em jazidas no Brasil, na Colômbia e no Zimbábue, estão entre as pedras preciosas mais valiosas do mundo. São derivadas de um mineral chamado berilo, mas ali, naquele restaurante com bancos de madeira pouco confortáveis, a esmeralda era de carne e osso, com olhos claros (um misto entre o verde das esmeraldas e o azul das safiras), lindos cabelos lisos esvoaçantes, dourados, como se tivessem saído de uma fábrica de bonecas.

A conta já tinha sido paga, mas restavam ainda dez minutos até a partida do ônibus. Orfeu teve de pensar rápido, para não ficar ali, na porta, dando bandeira feito bobo. Foi tomar mais um café, a quarta xícara da noite. Pediu com leite e bebeu sentado a poucos metros de Violeta, o nome de batismo da moça, de 20 anos – informações que Orfeu ainda desconhecia.

O brilho da esmeralda havia mexido com Orfeu. E ele, certo de que nunca mais a veria, tentava adivinhar em qual dos sete ônibus estacionados ela embarcaria. Algo em sua mente clamava, com o sotaque gaúcho de seus avós: "se ela entrar em seu ônibus, tu vais falar com ela". Orfeu não ousava discordar de sua mente, mas estava certo de que a moça tomaria qualquer veículo, menos aquele que vinha de Santa Maria (RS) com destino a Palmas (TO), passando por Maringá. "Se estivesse com sorte", pensou Orfeu, "teria acertado os números da loteria, ontem".

Do lado de fora do restaurante, esperou para descobrir o destino de Violeta, como se aquilo fosse mudar o fato de que nunca mais tornaria a vê-la. Para sua surpresa, porém, a loira que desfilava sem anel algum nos dedos, seguiu com passos suaves até o ônibus de Orfeu, que custava acreditar no que via. A situação era como uma nota de R$ 100, os trabalhadores sabem que existe, mas nunca se deparam com uma delas. "Agora tu vais falar com ela", cobrava a mente do rapaz. "Só se a poltrona do lado dela estiver desocupada", respondia Orfeu para si mesmo, com o sorriso na orelha e com os dentes provavelmente à mostra.

Orfeu entrou só depois de o motorista dar a partida no motor. Rumou para a poltrona nove, para ver na dez o agrônomo, na 11 a toda linda Violeta, na 12 um cidadão qualquer. Não conseguiu retomar a leitura de seu livro nem prestar atenção no que dizia o vizinho da soja transgênica, mas ouviu bem quando o indivíduo da 12 disse que desembarcaria em Cascavel, a 30 minutos dali, e Violeta que desceria em Umuarama – entre Cascavel e Maringá. Era a chance que pedia Orfeu, que cismava com o fato de Violeta estar quase ao seu lado e, ainda assim, não tê-la notado durante a viagem.

Quando o ônibus finalmente chegou à rodoviária de Cascavel, e o "homem da cobra" desceu, a bela loira passou para a janela, deixando livre a poltrona 11. Um fora era o máximo que poderia acontecer, o mínimo para Orfeu era ter, dali em diante, uma companhia de altíssimo nível – sem desmerecer o amigo da poltrona dez. Tudo estava conspirando a favor de Orfeu e, sob o peso de desperdiçar a ajuda dada pelo "universo", ele precisava tomar a iniciativa.

O agrônomo tinha descido para esticar as pernas. Orfeu tinha ficado, fingindo ler seu livro, enquanto bolava uma estratégia. Numa fração de segundo, como se os signos de Orfeu e Violeta desejassem um ao outro, os olhares deles se cruzaram, tempo suficiente para surgir a indescritível sensação de frio na barriga. Como se a ousadia sempre tivesse sido o ponto forte de Orfeu, ele sacou da mochila uma caneta esferográfica azul, com a tampa toda mordida, e escreveu em seu cartão de apresentação:

- Se ninguém ocupar a poltrona, posso me sentar ao seu lado?

Havia, é claro, o risco de alguém em Cascavel ter comprado aquela poltrona, o que, pela existência deste conto, não ocorreu. “Oi moça, dá uma olhadinha por favor”, disse ele, ao entregar o cartão-bilhete a ela. Violeta leu, sorriu e olhou sem pressa para Orfeu: "pode sim". Poucas vezes na vida o rapaz tinha respirado tão profundamente quanto naquele momento. Ele já tinha se preparado para o pior. “Caso ela diga não”, pensou, “nunca mais vou vê-la mesmo”.

Orfeu e Violeta estavam juntos, unidos possivelmente por uma força maior – mesmo que essa “força maior” se resumisse, porventura, ao restaurante das frituras. A probabilidade deles não terem se encontrado era enorme, difícil de ser calculada até pelo mais experiente dos matemáticos. Ela estava de férias, mas por um mero detalhe teve de retornar a Umuarama. Ele tinha de voltar a Maringá, porém, poderia ter optado por outro horário ou ainda por outra linha.

Naquele momento, em que não havia mais distância física entre os dois – seus braços se tocavam, com alguma freqüência –, era preciso quebrar o gelo, sem pôr o drink a perder. Orfeu, que na adolescência sonhou ser jogador de futebol, sentia-se como numa final de Copa do Mundo decidida nas penalidades, como se o mundo tivesse parado para vê-lo cobrar o pênalti. A "pontaria" de Roberto Baggio era tudo o que Orfeu não precisava naquele instante.

Com a voz grave, porém, ligeiramente trêmula, Orfeu arriscou: "sei que parece loucura de minha parte, mas o colega da poltrona ao lado estava dando indícios de que roncaria a noite toda", disse. Ambos riram. Ele emendou: "como é que não notei você no ônibus antes do jantar?". Orfeu estava sendo sincero. Concentrado na leitura, não tinha percebido Violeta embarcar na rodoviária de Realeza.

"Mas eu notei você", disse Violeta. "Você estava lendo um livro, hoje em dia é raro ver alguém ler durante a viagem", acrescentou. O livro dado pelo amigo de infância tinha garantido alguns pontos a Orfeu. O gelo havia sido quebrado. Com respingos de timidez, eles prosseguiram conversando, baixinho para não acordar os demais. Orfeu soube que ela era neta de poloneses. Com algum receio relembrou do passado, de uma história não muito agradável que teve com uma polonesa. Violeta soube que ele era descendente de portugueses, embora a pele morena se esforçasse para negar isso.

Não dormiram nos poucos minutos que tiveram juntos. E no pouco tempo ali, riram diante da “desgraça” alheia. Uma mulher, da poltrona de trás, acordou falando alto, assustada, com os olhos arregalados, quase saltando da face. Foi impossível não rir. A sonâmbula se desculpou, como se isso fosse necessário: tantos outros soltam gases e não se desculpam.

Orfeu tinha a impressão de que a conhecia há mais tempo, pediu a Violeta o endereço de mensagens instantâneas e recebeu também uma carinhosa anotação em seu livro. Contudo, nunca tornaram a se falar. A rodoviária de Umuarama foi, de certa forma, para aqueles jovens do sudoeste do Paraná, como a dose letal de veneno que pôs fim ao romance de Romeu e Julieta. Como se fosse possível encontrar mais de uma pepita de ouro no mesmo lugar, Orfeu ainda espera entrar no ônibus e rever Violeta, toda vez que viaja a Pato Branco.

18 comentários:

  1. que lindo LF ... tomara que um dia orfeu encontre mesmo violeta ... beijos

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  2. amei o teu blog e essa de orfeu é mesmo muito linda ainda acaba em casamento

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  3. Parabens pelo conto caro amigo.. de fato o modo q tu escreves deixa os olhos presos na tela, por alguns instantes quase sentir o cheiro de Violeta no ar.

    Eiguel Ribeiro (publicitario)

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  4. Adorei o conto, LF! Pela riqueza de detalhes, pela forma como foi escrito - uma pitadinha de humor. De certa forma, me lembrou o meu preferido, Fernando Sabino! Gostei mesmo!!!
    Abraço!

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  5. já disse e repito:
    adoro a forma sensível como escreve!!!
    continue postando.
    beijocas.

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  6. Sua maneira de escrever é única, seu talento com as palavras se compara ao de Pelé com a bola em sua melhor fase!!!
    Precisa viajar mais a Pato Branco...

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  7. Amigo
    Que conto lindo... adorei a leitura. Vc é muito talentoso. Torço para que reencontre a Violeta. Comigo aconteceu algo parecido, conheci uma grande amiga num simples banco de ônibus durante uma viagem de Beltrão e Cascavel.

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  8. Amigo
    Que conto lindo... adorei a leitura. Vc é muito talentoso. Torço para que reencontre a Violeta. Comigo aconteceu algo parecido, conheci uma grande amiga num simples banco de ônibus durante uma viagem de Beltrão e Cascavel.

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  9. Muito linda sua história,Fernando!
    É impressionante como escreve bem!
    Abraços e sucesso!!!
    Continue escrevendo sempre.

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  10. Foi essa a história que não ousei ouvir então! Gostei muito, apesar de ser um quase romance eu dei muita risada! Consegui te imaginar em cada gesto! Faltou só ter lido a inscrição do livro, mas esse privilégio foi só para os meninos! rs
    bjão

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  11. Aahhhh, quero ser mais um na torcida que assiste o desenrolar da história de Orféu e Violeta. Tomara que um dia ela tenha um final bonito. Pelo menos é o que a maioria deseja. (THIAGO CHIAPETTI)

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  12. Sempre que entro num ônibus torço para (pelo menos) não levar azar. Ter sorte como a sua já é um pouco mais difícil :)
    Outro dia subi num ônibus e uma bela argentina (não é piada!) lia um livro (em espanhol, é claro) do outro lado do corredor.
    A senhora ao meu lado tentava, desesperadamente, trocar de poltrona com a bela moça, que não entendia o "mudar de lugar".
    Nessa hora dei graças a Deus de um dia ter frequentado aulas de espanhol e ajudei na comunicação :)
    Como brinde, arranhei meu espanhol com uma bela argentina de Curitiba a Bal. Camboriú. Infelizmente meu destino era Florianópolis =(

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  13. Considero "Orfeu e Violeta" o principal texto deste blog, aquele que revela o nível que posso, hoje, atingir em um momento de inspiração - mas sei que tenho muito a melhorar.

    Quero agradecer a todos que comentaram. Cada uma das mensagens me causou grande alegria. Direi quem são os referidos amigos, em poucas palavras.

    Aleta e Carine foram minhas colegas no curso de Jornalismo... bons tempos aqueles; Eiguel é um grande amigo, que conheci na Fadep e com quem realizei alguns projetos como o fanzine O Contiúdo; Eduardo é meu irmão do meio e um dos meus maiores incetivadores como escritor-em-formação; Taiza é a esposa gente fina de meu amigo de infância Nando (K-Banha); Luana Caroline é a melhor namorada que meu irmão Eduardo já teve; Andrea e Lancelotti são amigos e colegas de redação em O Diário; Thiago, que agora vai casar, foi meu colega de trabalho no Jornal de Beltrão (grande cara); e Tais é minha prima... saudades!

    Obrigado a todos, amei os comentários.

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  14. Nota: 10

    Thiago Ramari (por email)

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  15. Nota: 10

    É a crônica que representa bem o seu estilo de escrever. É envolvente. Um dos pontos positivos é que a crônica traz um personagem carismático (aquele que nos faz torcer por ele, que nos faz lembra alguém familiar, ainda que não saibamos quem). Além disso, a riqueza de detalhes do lugar, bem como dos pensamentos e dúvidas que pairam sobre Orfeu nos transportam para dentro da história, o que é sensacional. É esse o ingrediente principal de uma boa história: uma vez envolvido, o leitor se entrega, mergulha e o, melhor, desfruta da trama. Foi assim que me senti: totalmente envolvida com a crônica. Por isso, minha nota é dez, dez, dez...

    Elaine Utsunomiya (por email)

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  16. Uma satisfação fechar a avaliação das melhores crônicas deste blog com uma declaração dessas, da colega de jornal Elaine. Na opinião dela e dos demais jornalistas convidados (Daibert, Vinícius e Ramari) esta é minha melhor crônica. Próxima etapa, agora, será publicar o livreto artesanal com as 12 melhores.

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