O romancista
John Grisham, 64 anos, é meu escritor norte-americano favorito, depois de Ernest Hemingway. Lembro-me bem do momento exato em que fui apresentado ao autor dos best-sellers "Tempo de Matar" e de "O Dossiê Pelicano". Foi em 2006, num pequeno quarto de uma república a um oceano de distância.
Folhas a cair no outono alemão, temperatura abaixo dos 10°C e aquela vontade de tomar logo um cafezinho para esquentar o corpo. No retorno do trabalho, uma correspondência enviada pelos meus tios Alberto e Iara me aguardava. A carta, que me encheu de alegria, estava acompanhada de um presente: o livro "Nas Arquibancadas", um dos melhores de Grisham (na minha modesta opinião).
Haviam-se passado 20 dias desde minha chegada a Bonn para um estágio na Deutsche Welle, a renomada emissora pública alemã. Apesar de morar na Alemanha e de estagiar num importante veículo de comunicação no exterior representarem a realização de um sonho, eu sentia uma forte solidão, especialmente à noite, quando retornava para meu pequeno quarto. Naquela minha primeira experiência internacional, aos 25 anos, mais de 11 mil quilômetros me separavam da família, em Pato Branco.
Aquela carta, que guardo até hoje, com imenso carinho, trazia uma mensagem reconfortante, otimista, com votos de sucesso. Diz um trecho da missiva:
"Você está tendo uma iniciativa maravilhosa. Aproveite esse momento ao máximo, capitalize as experiências, amplie os contatos e os horizontes. Lembre-se que todos torcemos muito pelo seu sucesso e acreditamos em você. Porém, quando der aquela saudade, sentir medo ou solidão, lembre dos ensinamentos e conselhos dos seus pais, seus tios e seus irmãos. Parabéns pela coragem e decisão".
Mensagens de apoio como aquela foram fundamentais para meu crescimento pessoal e profissional. Agora, aos 38 anos, vejo que fui um privilegiado por ter tido sempre esse suporte familiar. Nunca me faltaram referências positivas na minha família. Parte dos bons exemplos vieram do meu tio Alberto ou, simplesmente, tio Beto – como sempre chamei o irmão mais novo de minha mãe. Minhas lembranças dele vêm da mais remota infância, de quando eu entrava em seu quarto – ele ainda morava na casa dos meus avós – para espiar suas coisas, sem que ele soubesse. Nunca quebrei nada, registre-se!
Lembro-me que Tio Beto tinha um relógio de pulso que vinha acompanhado de várias pulseiras, algo bem descolado para os anos 80. Mais legal que isso era seu Alfa Romeo amarelo de quatro portas. Naqueles tempos, se uma Caloi 10 já colocava o rapaz em evidência, imagine só o efeito social de um carro quatro portas! É certo que meu tio, boa pinta, inteligente, funcionário de banco, datilógrafo de primeira (na época, isso importava mais que falar inglês) tinha inúmeras pretendentes.
Hoje com mais de 82 mil habitantes, Pato Branco devia ter menos da metade dessa população nos anos 80. Era uma cidade de pouca infraestrutura e sem opções de ensino superior. Quem quisesse prosseguir nos estudos precisava partir para centros maiores – uma opção pouco provável para maioria dos jovens pato-branquenses da época, exceto para os filhos dos ricos. Tio Beto desconsiderou as limitações e foi estudar em Porto Alegre.
Fico a imaginar as dificuldades pelas quais passou meu tio para estudar na capital gaúcha. Meu avô, Armando Cardoso, apesar de ser um homem de muita leitura, não era pessoa de posses. As conquistas de minha mãe e meus tios foram, em grande parte, mérito deles mesmos. Os desafios que enfrentei na Alemanha, com todo o suporte da família, por exemplo, em nada se comparam àquela jornada de um jovem do interior, sem recursos, na grande cidade.
Pela história que me foi contada, tio Beto retornou solteiro do Rio Grande do Sul, para sorte da minha tia Iara, uma moça de ótima família, uns dez anos mais jovem que ele. Eu era bem pequeno quando ele a apresentou aos meus pais. Todos logo gostaram dela. Alberto e Iara sempre formaram um belo e admirável casal, a ponto de – muito provavelmente – causarem aquela invejinha básica aos ex-pretendentes dela e às ex-pretendentes dele. Nos relacionamentos é assim mesmo, a maior parte fica chupando dedo.
Os anos foram se passando e a convivência com meu tio foi sempre uma constante. Foi com ele que aprendi a jogar xadrez, por volta dos dez anos, e a gostar de Fórmula 1. Nas festas de família eu, meu irmão e primos sempre desafiávamos os tios nos jogos de conhecimentos gerais, como o Perfil, e sempre perdíamos. Tivemos muitos acampamentos e viagens juntos, em família. Na minha formatura em Jornalismo, tio Beto estava presente. No casamento que não deu certo, também. Nos cinco meses que estive na Alemanha, também, ainda que em pensamento.
Por tudo isso, a descoberta de um câncer no pâncreas, há alguns meses, foi um baque para toda a família. Com grande tristeza minha mãe me telefonou para contar a notícia. Recém-aposentado da Caixa, tio Beto tinha uma série de planos. Gente ativa como ele sempre tem muitos planos. Nesta quarta-feira, 6 de novembro de 2019, ele partiu, aos 58 anos. Num primeiro momento, faltaram-me as palavras para os pêsames. Esses parágrafos todos foram escritos com lágrimas nos olhos.
Há alguns meses, estive em Pato Branco para visitá-lo. Tio Beto já encarava as sessões de quimioterapia, com a coragem de sempre. Minha viagem não teve tom de despedida. Todos tínhamos fé em sua cura, apesar de saber que a situação era bem grave. Foi a última vez que o vi pessoalmente. Triste.
Foi uma inestimável perda. Alguém já disse que "nunca estamos preparados para perder alguém que amamos". Deveria haver alguma lei celestial que impedisse pessoas de bom coração e caráter de morrerem tão cedo. À minha tia Iara e meus primos Miguel e Vitor Cardoso, meus sinceros sentimentos. Tio Beto, descanse em paz.
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Tio Beto com os irmãos Clacy (minha mãe) e Paulo |
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